segunda-feira, 21 de abril de 2014

Dia de Pagamento



Odiava o barulho que vinha dos sapatos molhados pela chuva, odiava ainda mais do que passar o dia todo com os pés molhados e pessoas irritantes ao seu redor. Pensava absurdamente em como se livrar da imagem que o atormentava nos últimos dias, pior ainda foi ter lido no crachá amarelado e roído o nome desprezível.
Estava na fila naquela manhã, o dia estava quente e abafado, entretanto a irritação era-lhe comum, então não perdia seu tempo com sentimentos deste tipo, apenas limitou-se a olhar. A fila de idosos era o que mais gostava de olhar- a senhorinha curvada e arrogante proferia meia dúzia de insultos à moça que dizia ter sido bloqueada a senha por excesso de tentativas.
Em meio à grande balburdia instaurada pelo nada dos seres humanos, os dedos roídos e em carne viva chamou-lhe a atenção: se ao menos fossem as unhas... Ao longe podia perceber a enorme devastação. A intimidação saltou-lhe o peito e o penteado desajeitado o tornava refém do sentimento vindo da enorme penúria.
O luminoso o direcionou ao caixa enquanto o barulho continuava. Eram apitos, conversas, saltos femininos e a porta giratória que ora em vez travava pela espontaneidade do vigilante que flertava com a estagiária dos caixas eletrônicos. Ele com mais que o dobro da idade de sua presa, mostrava toda a sua virilidade ao apertar o botão que proibia o acesso à agência fétida e populosa- o dia de pagamento do seguro social trazia ao ambiente cheiro de urina e velhice.
Evitou-lhe os olhos e acabou a encarando no crachá. Figura ignóbil e despretensiosa, não estava ali e não estava na vida também. Os lábios finos e ansiosos não paravam um minuto em meio a um mantra inaudível e irritante, tais quais os dedos ágeis e esfolados pela ausência de não se sabe o quê. Havia se levantado mais cedo naquela manhã e listou os cereais, o leite semidesnatado e as revistas sobre alimentação e dietas- mal se percebia, apenas fazia de quando em vem ajustes na calça social a apertando ao corpo quase esquelético.
A vontade era maior do a si próprio e sentia-se exposto num ambiente trivial. Passou-lhe a cobrança por baixo do vidro e aguardou impacientemente um tempo que lhe parecia estender-se pela vida. Percebeu os cortes em seus braços e sentiu-se ainda mais incomodado, sentiu náusea e o perfume barato o atingiu quando a moça lhe pediu um minuto e sumiu por entre uma porta que dava acesso ao administrativo da agência.
A saída do seu campo de visão não foi suficiente para trazer-lhe paz. Sabia que circulava no mesmo ambiente que ele e decorou o tilintar do salto velho e torto devido à ausência de botas ortopédicas durante a infância de abusos e desesperos. Queria livrar-se dela, queria livrá-la de si própria.
Um homem de meia idade não poderia ser alvo de aflições imputadas pela angústia da existência alheia. Decidiu esperá-la na esquina movimentada enquanto planejava e em meio aos pensamentos o vento mostrou-se vigoroso enquanto a tempestade se armava. Achou por bem saber onde morava e decidir o que faria durante o caminho.
A porta se abriu e envolta numa capa de chuva dirigiu-se ao ponto. Os passos mostravam-se ainda mais irritantes do que os dedos que lhe trouxeram demasiada repulsa. Sentou-se no fundo do coletivo de onde poderia perceber qualquer decisão da parte dela e então seu pensamento começou a criar corpo, não poderia existir e não deixaria existir tamanha afronta.
Não era a primeira vez que se sentia humilhado, lembrou-se de quando via pela porta entreaberta do banheiro o fio vermelho e quente descer pelas pernas que lhe serviam de assento nas manhãs de domingo. As navalhas cuidadosamente afiadas só foram encontradas anos depois numa sessão de masturbação quando foi puxar a revista escondida atrás do gabinete de madeira, revelando um compartimento.
Após uma freada brusca, levantou-se desajeitadamente e deu o sinal de parada. Empunhou a pequena lista e desceu no ponto do supermercado que costumeiramente frequentava. Caminhou uma quadra acima e atravessou a avenida movimentada, sempre sob o olhar angustiado e perscrutador que desejava se livrar de tanta falta de vigor.
Após alguns minutos de espera, seguiu caminhando pela calçada do supermercado enquanto do outro lado da via, quase que em par e passo, caminhava na mesma direção. Olhava sempre por medo de perdê-la de vista e decidiu diminuir a passada a fim de ter um campo de visão melhor, a avenida continuava movimentada e o cair da tarde mais se parecia com a noite após o temporal.
Ao vê-la dobrar à direita, atravessou a rua numa corrida despretensiosa e empulhou a navalha, a chuva ainda caía e deixava o bairro sem transeuntes. Precisava selar o destino que lhe fora imputado. Apertou o passo enquanto suas mãos suavam e, no meio da confusão de percepções, ouviu um estalo seco que fez o corpo inerte estender-se pelo chão- um rapaz de aproximadamente vinte anos corria com a bolsa puída e sem valor numa mão e a arma na outra. O leite se espalhou pela calçada misturando-se ao sangue ralo e sem cor, enquanto os carros que passavam pela poça ao lado jogavam a água da chuva no rosto pálido e de olhos abertos.

terça-feira, 11 de dezembro de 2012

Continuo enchendo meu ventre de você

Continuo enchendo meu ventre de você.
Sentimento é o que exala enquanto a verdade pinga de nosso suor.
É a leveza das manhãs e o parar do relógio no dia que corre entre sussurros e desejos.

Escuto cada palavra com minha alma cansada e sedenta.
Espero pelo momento em que tudo irá ficar lindo outra vez, 
Espero pelo som que sai do mover dos teus lábios chamando o que sou e meu corpo descansar no seu.

Não sou mais eu...
Tudo é você.

Minha alma sente tudo o que é teu no reino que criei para que seja meu.
Te aperto e te abraço; teu cheiro é meu também.
A agonia de tanto sentimento continua aqui...
E eu continuo enchendo meu ventre de você.

sexta-feira, 5 de outubro de 2012

Desilusão

Queria ter lágrimas para chorar,
Queria um minuto para me livrar,
Queria saber como fugir
Do que é não ter o que pensei possuir...

Sinto minha alma se dilacerar,
O meu dia vazio caminhar,
Sem saber em qual curva perdi
O que tanto me fazia sorrir...

Pergunto-me quando irá passar,
Se tudo que foi ainda será,
Se meu sentimento parará de agredir
Ao que fui e ao que pensei existir...

Confesso que chego a sonhar
Com o dia em que meu peito irá secar
Das lágrimas que não deixei cair
Por momentos que sonhei enquanto vivi.

sábado, 15 de setembro de 2012

Perseguição

Hoje sentiu medo de si. Suas mãos suavam como se não foram feitas para outra coisa. A finitude que tanto a visitara durante a vida, hoje resolveu tomar cor, corpo e voz. Sentia como se tudo fosse explodir lançando destroços para o ar, como nos filmes americanos que tanto odiava. Tudo insistia em testemunhar a catástrofe iminente.
Corria fugindo de sons que coexistiam dentro de si e que concorriam para um desespero cujo cheiro inundava as narinas já molhadas pela angústia. Os pés já não se faziam sentir, nem o corte feito na outra noite enquanto tentava parar o turbilhão que a incomodava. Corria e ouvia o tal barulho... Tão ensurdecedor e tão seu.
Alguns carros buzinavam e com todo sofrimento desviava das bicicletas. Percebia que a noite era mais viva que o dia. Tudo era igual à luz do sol e nada parecia poder mudar, uma calma ensaiada e fictícia, nada fugia da rotina das praças vazias e sujas. Apenas quando as figuras noturnas resolviam aparecer o cenário era desconfigurado. Desconfigurado tinha quase o mesmo som de desfigurado, começou a pensar enquanto andava mais rápido, já estava perto do destino. Ainda podia sentir o seu fim.
Desfigurados estavam seu sentir e sua percepção. Queria ter deitado e sentido a calma de outros dias. Seu desespero a tirou do lugar que queria estar há tanto e a fez ver o quanto era refém de sua angústia e desespero. O molho de chave insistia em embaralhar a que abria, enfim sentiu que passara ilesa por ela mesma mais uma vez. Do que tanto fugia era a pergunta que revirava seu estômago nos dias barulhentos. Chorou enquanto a água caía em seu peito e aquecia suas pernas.
Suspirava procurando figuras que sempre via em seu quarto, formadas pela luz da lua que insistia em entrar pela janela praticamente fechada. Contou até quatrocentos e doze, sentiu o peito se acalmar, os olhos se fecharem e o alívio do sono chegar. Estava livre.

domingo, 19 de agosto de 2012

E se quebrou.

E se quebrou...
Em centenas e miúdos pedaços.
Deixei cair dos meus dedos o que deveria estar em meus braços,
Foi o excesso de zelo e o vento que passou.

Era tão lindo, tão meu...
É tão ruim o que é seu  estar ao alcance de alguém
São ondas que me cobrem com o seu vai e vem
Às vezes me confundo e acho que quem se quebrou foi eu.

Vaidade, vaidade então.
Somos eu e você em jogadas marcadas
Todos os dias de mãos dadas...
Correndo com o coração na contramão...

De nada sou e tudo faço...
Corre com os ventos da dor batendo em seus cabelos
Nem tudo nessa vida merece desespero
Vai com o sofrimento em seu encalço.

Os olhos vão deixar de marejar,
O dia sempre virá para você.
O mundo vai sempre o obrigar a vencer
E a vida, de tudo, sempre irá se encarregar.

Vaidade, vaidade então.
Somos eu e você em jogadas marcadas
Todos os dias de mãos dadas...
Correndo com o coração na contramão...

domingo, 20 de maio de 2012

Dois para lá, dois para cá...


Atirava-se violentamente contra a parede do ambiente inóspito... Uma, duas, três... O barulho ensurdecedor precisava cessar. Deixou-se largar entre a escada e a porta dos fundos. Nunca conseguiu aprender com visitas e mais visitas ao campo.
O barulho... Praguejava-se inutilmente. Tudo corria por seus olhos e não havia como retroceder ao que lançou com aquele momento. Ao que sempre temia se expunha, como que num ritual de vivificação do que na realidade não existe e nunca existiu.
Mendicância e oblação. Conhecia de cor o caminho para ambos, de onde nada lhe pertence e tudo lhe falta. Os pés feridos pelas horas que caminhou ao nada não lhe traziam a aquietação prometida pelo cansaço. Porra de barulho.
Levantou e lançou-se por mais uma vez. O que lhe vem neste instante de repugnância não contorna mais, tudo se abriu diante de seus olhos. A flagelação é direito daqueles cujo intento podem alcançar. Não há substituição, era o que já sabia. Lançou-se e lançou-se...
O barulho, a valsa da aviltação. Dois para lá, dois para cá... Vá, lance-se mais uma vez! O que precisas mais? Queres algo cortante? Olhe-se ao espelho, meu bem... Vejas a epítome da ignobilidade. Aonde vais? Então sonhes comigo...  E tudo ficará bem,  eu lhe prometo, de sorte que não nos faltará oportunidade, afinal são dois para cá, dois para lá...

terça-feira, 8 de novembro de 2011

Diálogo

Como medir a falta? Mede-se em tempo? Em espaço, talvez? Então em como esta se deu? Será a medida dada por quanto sentimos dor? Não... Tudo se faz inútil frente à culpa de não se ter mais... Fomos expulsos do paraíso? Estamos sendo punidos...? Não... A falta apenas é.
Sentir falta é dádiva quando se sabe sofrer, delicadamente. Arrepelar-se por quê? Dê-me a mão e caminhemos juntos até a consumação dos séculos, amén. Ver-te, face a face, é perder mais um pouco, agora de mim. A tristeza é refrigério para a alma; o arder no peito é enfim estar vivo num lugar onde a inércia é a melhor defesa.
Entrega a encomenda de hoje. Falta, diga ao meu peito o que tanto queres... Sê objetiva como nunca fui nestes anos vividos. Entrevê o lutador cuja luta é perdida, ante ti, e, ainda sim, não retira as luvas. Complacência é o mínimo que meu peito, tão sofrido e despedaçado, espera. Dê-me um dia ao menos daquilo que eu não sei o que é.
Esperança é campo aberto, devastado pelo vento. Dias são emaranhados de uma vida dada ao que não se tem... Títere de mim. Veja o movimentar das cordas... Educadamente a cumprimento, querida falta. Respeito-a. Tens direção ao perdido, derrubas ao exímio pugilista, concede ao estéril as lágrimas...
Tenho uma vida toda. Estás em todo lugar. Sigamos par e passo, pois. Sei que inda testemunharei muito de ti... Contudo, nada verei. A bússola ao menos existe... Quando do monte eu contemplar a terra prometida, sei que poderei descansar. Tirarei as sandálias então...