Odiava o barulho que vinha dos sapatos molhados pela chuva, odiava ainda
mais do que passar o dia todo com os pés molhados e pessoas irritantes ao seu
redor. Pensava absurdamente em como se livrar da imagem que o atormentava nos
últimos dias, pior ainda foi ter lido no crachá amarelado e roído o nome desprezível.
Estava na fila naquela manhã, o dia estava quente e abafado, entretanto a
irritação era-lhe comum, então não perdia seu tempo com sentimentos deste tipo,
apenas limitou-se a olhar. A fila de idosos era o que mais gostava de olhar- a
senhorinha curvada e arrogante proferia meia dúzia de insultos à moça que dizia
ter sido bloqueada a senha por excesso de tentativas.
Em meio à grande balburdia instaurada pelo nada dos seres humanos, os
dedos roídos e em carne viva chamou-lhe a atenção: se ao menos fossem as
unhas... Ao longe podia perceber a enorme devastação. A intimidação saltou-lhe
o peito e o penteado desajeitado o tornava refém do sentimento vindo da enorme penúria.
O luminoso o direcionou ao caixa enquanto o barulho continuava. Eram
apitos, conversas, saltos femininos e a porta giratória que ora em vez travava
pela espontaneidade do vigilante que flertava com a estagiária dos caixas
eletrônicos. Ele com mais que o dobro da idade de sua presa, mostrava toda a
sua virilidade ao apertar o botão que proibia o acesso à agência fétida e
populosa- o dia de pagamento do seguro social trazia ao ambiente cheiro de
urina e velhice.
Evitou-lhe os olhos e acabou a encarando no crachá. Figura ignóbil e
despretensiosa, não estava ali e não estava na vida também. Os lábios finos e
ansiosos não paravam um minuto em meio a um mantra inaudível e irritante, tais
quais os dedos ágeis e esfolados pela ausência de não se sabe o quê. Havia se
levantado mais cedo naquela manhã e listou os cereais, o leite semidesnatado e
as revistas sobre alimentação e dietas- mal se percebia, apenas fazia de quando
em vem ajustes na calça social a apertando ao corpo quase esquelético.
A vontade era maior do a si próprio e sentia-se exposto num ambiente
trivial. Passou-lhe a cobrança por baixo do vidro e aguardou impacientemente um
tempo que lhe parecia estender-se pela vida. Percebeu os cortes em seus braços
e sentiu-se ainda mais incomodado, sentiu náusea e o perfume barato o atingiu
quando a moça lhe pediu um minuto e sumiu por entre uma porta que dava acesso
ao administrativo da agência.
A saída do seu campo de visão não foi suficiente para trazer-lhe paz.
Sabia que circulava no mesmo ambiente que ele e decorou o tilintar do salto
velho e torto devido à ausência de botas ortopédicas durante a infância de
abusos e desesperos. Queria livrar-se dela, queria livrá-la de si própria.
Um homem de meia idade não poderia ser alvo de aflições imputadas pela
angústia da existência alheia. Decidiu esperá-la na esquina movimentada
enquanto planejava e em meio aos pensamentos o vento mostrou-se vigoroso
enquanto a tempestade se armava. Achou por bem saber onde morava e decidir o
que faria durante o caminho.
A porta se abriu e envolta numa capa de chuva dirigiu-se ao ponto. Os
passos mostravam-se ainda mais irritantes do que os dedos que lhe trouxeram demasiada
repulsa. Sentou-se no fundo do coletivo de onde poderia perceber qualquer
decisão da parte dela e então seu pensamento começou a criar corpo, não poderia
existir e não deixaria existir tamanha afronta.
Não era a primeira vez que se sentia humilhado, lembrou-se de quando via pela
porta entreaberta do banheiro o fio vermelho e quente descer pelas pernas que
lhe serviam de assento nas manhãs de domingo. As navalhas cuidadosamente
afiadas só foram encontradas anos depois numa sessão de masturbação quando foi
puxar a revista escondida atrás do gabinete de madeira, revelando um
compartimento.
Após uma freada brusca, levantou-se desajeitadamente e deu o sinal de
parada. Empunhou a pequena lista e desceu no ponto do supermercado que
costumeiramente frequentava. Caminhou uma quadra acima e atravessou a avenida
movimentada, sempre sob o olhar angustiado e perscrutador que desejava se
livrar de tanta falta de vigor.
Após alguns minutos de espera, seguiu caminhando pela calçada do
supermercado enquanto do outro lado da via, quase que em par e passo, caminhava
na mesma direção. Olhava sempre por medo de perdê-la de vista e decidiu
diminuir a passada a fim de ter um campo de visão melhor, a avenida continuava
movimentada e o cair da tarde mais se parecia com a noite após o temporal.
Ao vê-la dobrar à direita, atravessou a rua numa corrida despretensiosa e
empulhou a navalha, a chuva ainda caía e deixava o bairro sem transeuntes. Precisava
selar o destino que lhe fora imputado. Apertou o passo enquanto suas mãos
suavam e, no meio da confusão de percepções, ouviu um estalo seco que fez o
corpo inerte estender-se pelo chão- um rapaz de aproximadamente vinte anos
corria com a bolsa puída e sem valor numa mão e a arma na outra. O leite se
espalhou pela calçada misturando-se ao sangue ralo e sem cor, enquanto os
carros que passavam pela poça ao lado jogavam a água da chuva no rosto pálido e
de olhos abertos.
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